O Som do Amor
Mini Conto
O Som do Amor
Sobre como a música (ou a ausência dela) molda nossas almas.
CONTOS
Bia Bizaio
1/1/20255 min read
O som da campainha me traz de volta do devaneio, ecoando pela casa como um sussurro, suave e insistente. Meu coração dispara. É ele. Marcos. Meu Marcos. Mas não é o mesmo homem que vi partir meses atrás, cheio de vida, com os olhos brilhando de coragem. Agora, o silêncio se tornara sua companhia mais constante, um abismo invisível que nos separa.
Com a postura curvada sob o peso de uma guerra que eu jamais entenderia, Marcos ergue a cabeça para me encarar. Seus olhos, outrora vivos, agora estão distantes, perdidos em algum lugar que eu não poderia alcançar. No lugar do sorriso, estão as rugas, desenhando-se por todo o rosto, desde os cantos tristonhos da boca, até a testa, mostrando-se em linhas horizontais permanentes. A pele caída ao redor das bochechas enfatiza que ele deve ter perdido pelo menos 20 quilos, e seu corpo franzino parece perdido dentro da farda militar larga e desbotada.
Tento conter as lágrimas que ameaçam brotar. Então, em um pedido silencioso para meu coração aguentar um pouquinho mais, me contenho de me aproximar. Ergo as mãos, em um deslizar de gestos com os dedos:
– Bem-vindo de volta, Marcos – eu “digo”, ainda que com os lábios completamente fechados, usando apenas a linguagem de sinais quebrada que pude aprender nas últimas semanas, assim que recebi a carta com a notícia que mudaria nossas vidas para sempre.
“Marcos Silveira está voltando para casa”, dizia a carta. “O grupo de apoio pós-guerra se coloca à disposição dos senhores para as terapias ocupacionais de trauma e reabilitação para injuriados em guerra. Familiares são bem-vindos. Por favor, entre em contat…”
Com a carta nas mãos trêmulas, a palavra “injuriados” saltava aos olhos e não tive como absorver mais nada. E agora, é sua presença que me salta.
Ele não diz nada. Nem um som. Apenas fica parado ali, como se esperasse que eu soubesse o que fazer. A verdade é que eu não sei. Nunca soube – e o silêncio entre nós grita mais alto do que qualquer palavra poderia.
O silêncio… que chega com a promessa cruel de nos acompanhar para sempre, a partir de agora.
O tempo parece ter parado, e minhas amarras imaginárias se soltam assim que me atiro em seus braços, envolvendo seu pescoço e afundando meu nariz em sua pele. Marcos hesita antes de retribuir, como se até mesmo o toque fosse um lembrete do que ele havia perdido. A guerra o tinha levado para longe, mas eu estava determinada a trazê-lo de volta.
– Você está em casa – eu sussurro ao pé do ouvido. Sei que ele não me ouviu, mas não importa. Eu diria isso quantas vezes fossem necessárias.
Quando Marcos entra, cada passo seu é carregado de uma história que eu jamais ouviria por completo. Ele se senta no banco de um piano na sala, o lugar onde tantas vezes tocamos juntos, em sintonia com nossos sonhos e planos. Agora, o que resta é um vazio que eu preciso preencher, mesmo sem saber como.
Nos primeiros dias, o tal silêncio se mantém entre nós, pesado e doloroso. Ele se move pela casa como uma sombra, sempre presente, mas nunca realmente aqui. As noites são as piores. Às vezes, eu o vejo levantar da cama e caminhar até a janela, olhando para o horizonte como se esperasse encontrar algo. Quando o sol surge, ele continua ali, imóvel, preso em algum lugar entre o passado e o presente.
Observo à distância, sem saber como atravessar esse vazio que se alargou entre nós. Cada refeição compartilhada é um lembrete insistente de que as palavras que antes preenchiam nossos dias agora não fazem mais parte da nossa rotina.
Então, em uma manhã fria de inverno, Marcos quebra a quietude. Não com palavras, mas com um gesto simples. Ele está parado ao lado do nosso piano quando eu trago o café, e dessa vez, ao invés de apenas pegar a xícara, ele olha para mim. Seus olhos continuam cansados, mas há algo novo neles. Uma pequena chama. Um pedido de ajuda.
– Me conte sobre você – ele pede, fazendo um gesto com as mãos. A linguagem de sinais é o suficiente, mas seus lábios acabam sussurrando as palavras em um reflexo, acompanhando suas mãos, como se falar ainda estivesse intrinsecamente ligado a elas.
Meu coração quase para. É a primeira vez que ele se interessa por algo desde que voltou. Com a voz trêmula, começo a “falar” ou, bem… gesticular. Conto sobre as músicas que compus, divago quanto as propostas de fim de ano e me animo ao contar do musical que estou produzindo. Enquanto falo, ele apenas ouve. Talvez não com os ouvidos, mas de uma forma mais profunda. E assim, dia após dia, nosso silêncio começa a se transformar.
Os gritos da guerra ainda habitam em seu coração, eu sei. Mas, aos poucos, estamos costurando uma nova vida.
Marcos começa a se sentar mais vezes ao piano. Ele não toca, apenas sente as teclas sob os dedos, hesitante, como se temesse quebrar algo precioso. E eu fico ao longe, sempre atrás de algo ou fingindo estar ocupada com qualquer coisa, esperando ser suficiente para ele não me perceber, enquanto espero o momento certo.
Uma tarde, enquanto o sol se põe, ele está olhando fixamente para as teclas e, desta vez, mantém o dedo suspenso sobre uma delas. Há uma tensão no ar, como se ele estivesse prestes a fazer algo monumental.
Mas ele para, incapaz de seguir adiante.
Meu coração aperta.
Eu me aproximo devagar e me sento ao seu lado no banco. Sem dizer uma palavra, coloco minha mão sobre a dele e, com delicadeza, pressiono a tecla. O som ecoa suave pela sala, e um arrepio percorre minha espinha. Marcos me olha, surpreso, enquanto algo em seus olhos diz que ele entendeu.
Eu sorrio, encorajando-o.
“Podemos tocar juntos,” é o que meus olhos dizem, em um convite mudo.
Devagar, seus dedos começam a se mover, trêmulos no início, mas logo encontrando um ritmo que eu conhecia tão bem. E, por um instante, somos nós de novo. A música preenche o espaço vazio, costurando algumas das feridas invisíveis que a guerra havia deixado. Não precisamos de palavras. O som do piano, o som do amor, fala por nós.
Aos poucos, vejo Marcos relaxar. Ele começa a tocar sozinho, ainda que apenas fragmentos, notas soltas que parecem tímidas, mas cheias de significados e, o que começou como um ato único, logo transformou-se em rotina.
Nossos dias começam a ser marcados por essas pequenas vitórias, momentos em que o passado parece mais distante, e o futuro, mais possível.
Uma tarde, enquanto toca, ele para de repente e olha para mim, sério, com um brilho nos olhos que eu não via há muito tempo. Pega minha mão, firme, e seus lábios formam as palavras que meu coração desejava ouvir.
– Obrigado, Helena. – A voz sai rouca, quase imperceptível, mas é a coisa mais linda que já ouvi.
Ele continua lutando, e nós sabemos que a estrada será longa. Pela primeira vez desde que voltou, sinto que não estou sozinha nessa batalha. Há esperança. E enquanto o som do piano ecoar pela casa, sei que, juntos, encontraremos uma maneira de viver como se as notas preenchessem os vazios que as palavras não podem alcançar.